Por: Roque Passos
As duas se encontraram quando voltavam para suas salas. Já havia dois dias que não conversavam, uma eternidade para elas. O intervalo de vinte minutos passara voando, mal deu para tomar uma xícara de café.
- Amiga, que batom maravilhoso! Hum... Como você tá magra.
- São seus olhos querida. Você que está com um corpo espetacular.
Ah, você soube da Dona Astrogilda? Perguntou a professora de Biologia.
- Não, menina. Aconteceu alguma coisa com ela? Indagou a colega de Matemática.
- Ai, amiga. Você não imagina o que "Eles" fizeram com a pobre.
- Meu Deus do céu, "Eles" a fuzilaram? Por favor, por tudo que é mais sagrado, me diga que não. Suplicou a professora, levando as mãos à boca.
- Quase isso, minha linda. Reclamaram que a sopa estava sem sal. Ela disse que o tempero tava no ponto, que devia ser o paladar deles...
- E ai menina? Interrompeu a colega, cheia de expectativa.
- "Eles" resolveram fazê-la experimentar a sopa. A arrastaram até o caldeirão fumegante. Quatro deles a seguraram com uma força descomunal, enquanto os outros em circulo gritavam em coro: " faz ela beber, faz ela beber, faz ela beber, faz ela beber"...
- Por Deus, não! Gritou a colega em desespero.
Já com lágrimas rolando, a professora prosseguiu:
- Seguraram a cabeça dela tão firme, que a coitada não conseguia mexer nem os olhos...
- Jesus, Maria, José. Pelo amor do Altíssimo, salvem essa pobre. Rezou em desespero a colega de Matemática, como se estivesse presenciando tudo.
- Ninguém veio salvá-la. Nem Maria, nem José... Enfiaram a cabeça da Astrogilda no caldeirão em chamas... Meu Deus! Ela tentou se livrar: mexeu as pernas, tentou soltar os braços. Mas "Eles" a detiveram com uma força luciférica. O líquido, que mais parecia magma oriundo das profundezas do núcleo, penetrou pela garganta da pobre em direção aos pulmões, dilacerando, destruindo todos os tecidos...
- Por favor, pare. Eu não aguento ouvir mais. Suplicou a colega.
- Agora, ela está lutando para se salvar,em uma cama de um hospital público, que nem médico tem para acompanhá-la.
- Chega, chega. É muita crueldade.
- Mas não acabou. O pior é que a pobre nem imagina que foi demitida.
- Não. Você tá mentindo.
- Juro por essa luz que meus olhos cansados de tantas leituras e correções conseguem enxergar.
A professora pensou na senhora de sessenta e três anos, quarenta dedicados ao colégio, demitida, enxotada como se fosse uma criminosa. Vivendo o pior momento de sua vida, sendo atacada justamente por aqueles à quem sempre dedicara tanto amor. Não gerara nem um fruto em seu ventre. Por isso, considerava "Eles" como seus filhos.
Desprovida de sentimento de posse, por várias vezes usou seu mísero salário para incrementar o lanche com ingredientes mais saborosos.
- Não compreendo. Por que a demitiram?
- Aqueles, você sabe quem, fingiram ter passado mal e alegaram que foi o lanche. A acusaram de tentar envenená-los. Ela pode até ser presa... se sobreviver, é claro. Concluiu a professora, secando delicadamente as lágrimas com um lenço de papel que a colega lhe estendeu.
- Que loucura. Jesus, em que mundo nós estamos. E eu que quase obriguei um deles a tomar um copo de mingau.
- Ainda bem amiga que você não fez isso. Eles estão se infiltrando em todos os lugares. Nossa Direção... você sabe. Está sobre o controle deles...
- Pare, já chega. Só pode ser um pesadelo.
A pobre da Astrogilda, que sempre se sacrificou para oferecer o melhor lanche à todos, "Eles" fizeram isso, imagine o que não farão com nós, que vivemos cobrando deles tarefas de casa, provas...
- Ah, minha cara amiga. O tempo de nós cobrarmos alguma coisa deles acabou. "Eles" estão assumindo o controle. Precisamos nos defender da melhor forma possível.
- Como o Cleiton? Viu só o que aconteceu com ele?
- O professor da armadura de aço?
- Ele mesmo. A Administração o proibiu de usar a armadura. Disseram que era uma ameaça à segurança de você sabe quem. Como ele se recusou, foi suspenso e agora uma sindicância vai apurar a acusação de que ele estava tentando matá-los.
- Temos que fazer alguma coisa. Recorrer a alguém, pedir ajuda a Secretaria.
- Que Secretaria? Tá delirando? Não tá vendo que a Administração está invertendo tudo?
As vítimas são tratadas como vilões, os vilões como vítimas. Olha os exemplos da Astrogilda e do Cleiton...
- Meu Deus...
- É, só Ele mesmo para nos socorrer.
Lembra do professor de Artes, que atuava no Fundamental II?
- Sim. Ele não foi transferido para aquele colégio conhecido como zona da morte?
- É. Mas você sabe porque ele foi transferido?
- Ah, soube que ele pediu para sair. Não se sentia mais a vontade trabalhando aqui.
- Ai, ai. A história real não é bem essa.
- Então, o que aconteceu de verdade?
- Um de "Eles" mandou o professor enfiar as duas mãos no... bem...você sabe... naquele lugar e bater palmas...
- Não acredito. Que absurdo. Mas esse você sabe quem já foi punido exemplarmente?
- Tá querendo fazer graça com a situação, amiga?
Ele levou o caso à direção. Sabe o que ouviu?
- Uma palavra de apoio, pelo menos.
- Apoio? O Diretor disse que é preciso ter paciência, que é normal, são coisas da idade.
- O que? Só pode ser brincadeira. O Diretor falou mesmo isso?
- Falou sim. E nem chamou você sabe quem para conversar.
O professor recorreu a Secretaria. Aqueles que fingem administrá-la, disseram que a culpa era toda dele. Que a linguagem e as atividades aplicadas na aula estavam excitando "Eles". E que para o bem dele e, principalmente, de "Eles", o certo era transferi-lo.
- Mas o mandaram para a zona da morte.
- Sem o apoio do Sindicato, nem dinheiro para contratar um bom advogado, ele desistiu de recorrer a justiça.
- É amiga, temos que....
A professora achou melhor não prosseguir, ao perceber um par de olhos sombreados à espreitá-las pelos corredores.
- Vamos logo para as nossas salas. Ou melhor, as salas de "Eles". Antes que a Secretária Particular do Diretor nos acuse de conspiração contra você sabe quem.